Oficineira Michele usou sua experiência em hospital
de saúde mental para arrancar história dos tímidos
jovens da Turma C
A Turma C do Bairro da Luz, comandada pela oficineira Michele Pereira Lima Vieira, mais parece uma roda de terapia comunitária do que uma gincana social. Embora seja fisioterapeuta, Michele utiliza diversos elementos da psicologia para arrancar depoimentos do grupo que se reune às terças e quintas na Escola Municipal Julio Rabello.
Não foi diferente na noite da última quinta-feira, quando o ventilador da sala teve que passar a maior parte da oficina desligado para que o motor de suas hélices não encobrisse os relatos sussurrados pelos 22 jovens presentes. Embora não haja a obrigatoriedade de se trazer histórias escritas, não se pode deixar de notar que todas as narrativas foram orais.
O tom terapêutico da oficina começou com a pesquisa em uma série de cartazes confeccionados pela oficineira, nos quais ela identificou diversos sentimentos e sensações. Cada um dos jovens devia começar o seu depoimento por intermédio de uma dessas palavras, escritas com tinta verde e preta. Caso não encontrassem o sentimento ou sensação provocada pela obra de que iriam falar, eles poderiam escrevê-lo em um dos cartazes em branco, próximos ao oficineiro.
Ao contrário das turmas A e B, que escreveram com tintas pretas diversos estados emocionais não previstos por Michele, os jovens da turma C não acrescentaram nenhum cartaz. Talvez seja uma mera conscidência, mas a esmagadora maioria das obras relatadas pelos jovens tinha sido iniciada no governo Lula e ainda estava em andamento. Também havia unidade nos sentimentos e sensações despertados pelas obras relatadas. Elas sempre começavam com preocupações, passavam por um período de transtorno e apreensão, mas, no fim, todos estavam felizes com o resultado.
Na casa da mãe não tem graça
Os primeiros relatos foram feitos pelo casal Diego e Taís Cristina . Ela contou da sua tristeza por não ter feito obra na bela casa em que foi morar com o marido, da qual tiveram que sair depois dos estragos provocados pelas chuvas de verão de 2007. Michele tentou conduzir Taís até uma história de obra na casa de seus pais, mas não conseguiu vencer a barreira imposta pela jovem. "Obra na casa da mãe não tem graça", disse Taís. Já seu marido Diego não opôs resistência a falar das obras feitas pelo pai na casa para a qual voltou com a esposa depois que as chuvas afogaram o sonho de ter uma vida independente. "Dou graças a Deus por ter uma casa para morar", disse ele depois de mostrar o cartaz com a palavra "felicidade".
Mãos calejadas
A melhor história da noite, indicada pela oficineira na formação do último sábado, foi uma das últimas a ser narrada. Acompanhada de uma moral segundo a qual seria um risco convidá-lo para qualquer obra, o estudante Josiel José da Silva Junior contou com graça as duas únicas e recentes obras de que participou. A primeira, tão recente que pôde mostrar os calos em suas mãos, fora o convite do pai de Valdir, amigo de rua e de projeto. "O pai dele me ofereceu um dinheiro para eu fazer as sapatas da casa que ele está construindo", disse o bem humorado Junior, que somente agora soube que sapatas são buracos.
Além de encher suas mãos de calo, os 18 buracos produziram diversas emoções no coração de Junior: medo, sofrimento, desespero e felicidade, conforme relatou por intermédio dos cartazes que mostrou para o grupo enquanto contava suas histórias. Esse mar de emoções começou a jorrar como a água do cano que estorou ao enfiar a picareta em um lugar que o pai de Valdir garantiu ser seguro. "Caraca, descobri água", disse ele, com o bom humor de sempre.
Medo do prejuízo
Mas o medo de que aquela água chegasse ao quarto em que o cimento estava guardado inibiu as piadas que normalmente fluem da sua boca. "Tive medo de pagar o prejuízo." O medo só se dissipou quando o pai de seu amigo chegou e conseguiu fazer uma rosca no cano estourado. O alívio por não precisar meter a mão no bolso deixou-o feliz.
Duas semanas antes, Junior acordara às cinco da manhã para ajudar na casa de um outro amigo. Pato novo, ele até viu a barriga se formar na laje, mas ficou com receio de pagar um mico ao alertar para o perigo de desabamento. "Só avisei na última hora e foi por pouco que não aconteceu uma tragédia com o pedreiro", contou. Viu então o desespero no rosto das pessoas que quase se acidentaram e sofrimento no dono da obra, que além dos custos com o material perdido, gastou uma grana com a cerveja e a feijoada oferecidas de praxe aos convidados.
Relações familiares
Muitas histórias apresentadas na primeira oficina da sexta-feira denunciavam as complicadas relações familiares das camadas mais pobres da população, onde rixas históricas vêm à tona na hora da divisão do terreno do patriarca ou mesmo dos cômodos da casa. Esse foi o caso de Roseane Gomes, que levou um pedaço de tijolo e selecionou o cartaz da alegria. A casa na qual mora desde que se entende por gente com a avó, a mãe e uma tia foi desmembrada para que pudessem romper a simbiose, mas em compensação reduziu o espaço de cada um deles. "Ficamos com três cômodos", disse Roseane.
Seu relato girou em torno do resgate de auto-estima, proporcionada pela obra que acrescentará uma sala e uma varanda à casa dela, que será feita por um primo e um tio. A história de Angélica Ferreira é um espelho ampliado do de Roseane. A casa da avó, que também foi desmembrada para que os tios abrigassem suas respectivas famílias, agora comporta no mesmo quintal quatro novas obras. Todas essas casas estão em permanente ampliação. A tia, que herdou um dos três quartos da avó, fez primeiro um banheiro e uma cozinha, mas, para dar um mínimo de conforto aos três filhos, construiu uma laje para novos quartos e mais um banheiro. "Minha casa começou só com um quarto e uma sala", contou Angélica. "Com a ajuda de tios e primos, fizemos cozinha e banheiro", orgulhou-se.
Viciada em obra
Algumas obras são intermináveis e o são pelos mais diversos motivos. Algumas famílias não param de crescer, outras só conseguem fazer a obra depois de muitos anos poupando centavos e, por fim, outras namoram com processos compulsivos. A família de Tiago, composta por cabalísticos seis homens e uma mulher, passou cinco anos trabalhando das seis da noite até meia-noite para fazer a casa dos sonhos da matriarca. "Todos os homens eram pedreiros e foi quebrando cômodo por cômodo para ajeitar o teto que a deixou deprimida quando o teto caiu e ficou apodrecendo a viga", disse Tiago.
A tia de Marcia Batista aproveita o casamento das filhas para alimentar o verdadeiro vício que tem no pó das obras. "Ela já construiu umas casa para uma das filhas que havia se mudado para o centro de Nova Iguaçu", contou Márcia, que é vizinha da sua tia. "Agora ela vai construir outra para uma filha que mora no Mato Grosso, que enhgravidou e vai casar." A tia de Márcia não perdeu o prazer de fazer obra nem mesmo quando um burro derrubou o muro que dividia o quintal para demarcar o terreno no qual contruiria sua terceira casa.
Tragédia anunciada
Houve também as histórias dramáticas, dentre as quais nenhuma superou a de Renata Lorraine. Vinda de São Paulo com 8 anos, ela foi morar com os avós em uma casa velha em cuja segurança Renata jamais confiou. "A casa é forte", respondia-lhe a avó nas noites de chuva forte. Nem mesmo a imagem de São Jorge foi capaz de impedir o que a menina temeu desde o dia em que se mudou. "Eu estava no quintal e de repente só ouvi o barulho", lembrou Renata. Se não fosse a solidariedade dos vizinhos, ela diria que restaram apenas a cozinha da casa e as roupas da família. "Eles ajudaram a gente a recontruir a casa e deram guarida para mim, enquanto meu irmão ficou na casa de mudinho meus avós no que restou da nossa casa." Hoje a casa é forte e nova.
Nenhum comentário:
Postar um comentário