segunda-feira, 13 de outubro de 2008

Brincadeira contemporânea

Palhada é o primeiro palco para intervenções da BXD Crew
Por Alcyr Cavalcanti

O tempo não ajudava, transformando as ruas da Palhada em um mar de lama. Contrariando as previsões, lá estava desde cedo a equipe de Dante para colorir as ruas. Em vez de lama, muita cor, para animar a festa. Operários e suas máquinas trabalhavam incessantemente para tornar habitável as ruas de Nova Iguaçu. As obras não são eleitoreiras, o segundo mandato está garantido. É o cumprimento de uma promessa. O ditado popular foi seguido à risca: “promessas são feitas, para serem pagas”.


Dante e a turma da BXD Crew começaram cedo. Os preparativos foram “ao cantar do galo” de uma sexta-feira do mês de outubro. David Nogueira da Rocha, o Dante, um carioca de 28 anos, é o coordenador do projeto. Para seus grafiteiros, é “o chefe da gangue”. Dante é o verdadeiro artista das ruas. Na conceituação de Gramsci, um “intelectual orgânico”, acreditando promover senão mudanças sociais, pelo menos mudanças no olhar a Baixada Fluminense. Mudar a lama, o caos em algo habitável, onde sintam prazer em morar e transitar. Para ele, “a arte pode ajudar na transformação”.

A verdadeira escola é a rua
Da mesma forma que os neo-realistas italianos, que filmavam nas ruas destruídas de uma Itália do pós-guerra, grande parte da arte atual é feita nas ruas. “Não cursei nenhuma escola de Belas Artes, faço grafite desde 1999. Gostava de desenhar, de fazer uns rabiscos desde pequeno. Meu primeiro contato foi com a pichação. Já fui um pichador de muros e paredes.” A arte das ruas pode em algumas ocasiões trazer conseqüências inesperadas. Dante foi levado à delegacia de Mesquita em 2003. Estava pichando muros, e não sabia que para fazer arte, é preciso uma autorização. Mas o delegado foi compreensivo, Dante foi logo liberado, depois de algumas explicações. Tinha consciência de não ter cometido nenhum delito.

Dante sabe estar fazendo uma arte de transformação, nunca teve vontade de expor em galerias de arte. Para ele é uma arte cristalizada, de elite, onde poucos podem ver e analisar. Já a street art, como a grafitagem é chamada desde algum tempo, foi finalmente reconhecida através da obra de Jean-Michel Basquiat, sendo apreciada por milhões. De simples pichador de muros, Basquiat foi elevado à categoria de expoente do neo-expressionismo, ícone da cultura contemporânea.

O grafite deve ser diferenciado da simples pichação, é muito mais complexo, e aproveita as ruas e seus muros para criar uma linguagem intencional de interferência. Na Palhada, a inscrição em seus muros “Lá em casa brincamos de não deixar a torneira aberta. E na sua?” evidencia uma preocupação em evitar o desperdício de um líquido tão precioso, que começa a faltar em boa parte do planeta. Uma boa parte das reservas hídricas está no Brasil, sendo motivo para cobiça de muitas nações.

A turma do Dante
Marcos Valério da Anunciação, o Marquinho, carioca de 28 anos, morador de Rocha Miranda, faz parte da turma. Veio rapidinho a chamado de Dante para “dar uma força”. Tem uma vida intensa, está sempre correndo de lá pra cá. De porte avantajado, trabalha na Gávea como segurança em um condomínio. Faz desenho industrial na Uni-Rio, no Rio Comprido. “Faço prevenção de segurança, não uso arma nem gosto de bater em ninguém, mas sei me defender quando for necessário. Faço um tipo Guarda Belo, um segurança da paz. Prezo a vida dos outros, tenho uma mulher que adoro, Alessandra, e um enteado, Vitor, de oito anos, que trato como filho. Ele adora desenhar e está aprendendo grafite comigo”, diz Marquinho com um sorriso. Diz ter sido influenciado por You 2, grafiteiro da Rocinha que morreu vitima de bala perdida em tiroteio na favela. Aprecia também o trabalho de Rollei e Lide, grafiteiros da Rocinha, já tendo feito intervenções com a dupla. Marquinho não se limita à arte das ruas, faz também pintura em tela acrílica.

A braçada deve ser rápida. Tá ligado?
Os muros são trabalhados em uma extensão variável, geralmente entre 10m e 14m de largura, por 2 m por 2,30m de altura, próximo a um modelo padrão. Os muros são preparados com tinta amarela como fundo, assemelhando-se a uma tela pronta para ser pintada. A arte é aplicada em dezenas de sprays. Às vezes são usados bicos. A braçada deve ser rápida, deve estar a uma distância do muro de um tubo de spray ( 20 cm ) para o jato sair de maneira eficaz, e não ser levado pelo vento. Os artistas devem usar máscaras para proteção. O alto preço afugenta os grafiteiros, que trabalham ao natural, se arriscando a ter doenças respiratórias, pelos resíduos de metal contidos na tinta. Pilhas de sprays usados ficam acumulados em um montinho. A arte da rua também consome.

Moradores passam e param para admirar a obra. É um happening performático ao ar livre. Isso nunca aconteceu, pelo menos como um projeto elaborado. Os grafiteiros trabalham aceleradamente, é arte em movimento. Na rua Santa Isabel, no muro do 435, fazem seu ofício sob a proteção e a vigilância de Jura, liderança local, candidato número 44123 que tudo observa através de uma propaganda eleitoral um pouco acima, presa em um galho de árvore.

Reginaldo Belarmino tem 28 anos e é solteiro. Está desempregado, em uma ociosidade forçada, como grande parte dos jovens em nosso país. Para ele, foi um “programão” num lugar de poucos atrativos, principalmente para quem não tem dinheiro para a diversão. “Fiz a base de tinta do muro, tenho muito orgulho em colaborar. Nasci em Nova Iguaçu, aqui mesmo na rua Santa Isabel. Espero que as obras fiquem logo prontas, só assim acaba esse lamaçal”, diz. Reginaldo acompanha a equipe atentamente até o final da rua, ao término da intervenção.

Mas nem tudo corre conforme o cronograma. Quando a equipe se desloca com todos os apetrechos e dezenas de tubos de tinta para o “mãos à obra”, acontece o inesperado. O muro está preparado conforme o combinado, mas um monte de areia e brita impede a intervenção. Está bloqueando o acesso em quase todo o muro. Rufos tenta fazer os primeiros traços, quase se atola no monte de areia e brita, desiste. Impossível trabalhar. O que fazer?

Plano B
O plano B foi acionado, partiram para outra rua, para a intervenção em outro muro. Desta vez quem começa a arte é Osvaldo Ferreira Neto, o Rufos, 26 anos, morador de Mesquita. Aprendeu na prática, gastando muita tinta e muito spray. Trabalha também com aerografia, usando pistola e compressor. Mas gosta mesmo é de grafitar em 3D, estilo tridimensional. Também tem uma base de aprendizado em desenho e pintura com pincel. Acha que todas as artes procuram transmitir mensagens de seus autores.

Josué Gonçalves tem 22 anos, é o J.C.S, o mais novo do Crew. “Me formei na prática das ruas, a prática traz a perfeição. Aqui no Rio temos muita dificuldade, não é igual a São Paulo, onde o grafite já está reconhecido como arte popular.” Estuda biologia e faz estágio em um laboratório. Sonha em ser biólogo marinho, adaptando a grafitagem ao ensino da biologia.

Meninos e meninos começam a chegar. Olhares curiosos cheios de perguntas. Iasmin Martins Bello, beleza local de 16 anos, mostra intimidade com a arte, o grafite está no sangue. Seu tio Short faz parte do grupo de amigos, e faz questão de mostrar Batman, o Cavaleiro das Trevas emoldurando a parede de seu quarto.

"Tá acabando"
Outro imprevisto, embora previsto. Acaba a tinta, Dante improvisa um som: ”Tá acabando, tá acabando, a tinta tá acabando, olé, olá”. Para ficar mais perfeito (nos trinques) só faltava um som, o hip-hop para acompanhar e inspirar o grupo. Dante tentou o som, mas não conseguiu. Mas não vai desistir, vai unir traços e sons das ruas para ficar ainda melhor.

Mas como tudo acaba em samba, ou futebol, o jeito é fazer uma “roda de bobo”, com a bola dos garotos da rua. Os quatro demonstram habilidade com a pelota. Embaixadas, puxetas, matadas no peito, de voleio, novos Robinhos estão aparecendo. Dante se destaca no domínio da bola. A roda é formada pelos principais times do Rio, com leve predomínio de vascaínos. No auge da animação, toque de recolher. A bola cai num poço de lama, para decepção geral, “cortando o barato da rapaziada”.



A um canto, apreciando a roda, Juarez Sebastião e sua fiel companheira, a égua Baiana, fazem pequena pausa a pedido da reportagem. Juarez carrega em sua carroça material de construção para fazer um puxadinho. Baiana se mostra inquieta, tem horários e obrigações a cumprir. Juarez pede licença e continua a cavalgada.

Acabamento
Vem chegando para acompanhar em outras ruas uma dupla de jovens do projeto, devidamente vestidas com a camisa do "Minha rua tem história". Perguntam pelo grupo e dizem que adoram grafitar. Liliane Cardoso Berdião tem 19 anos e terminou o segundo grau. Entrou no projeto para se especializar em informática, veio junto com Ana Paula dos Santos, que tem 22 anos e é mãe de dois filhos. Para elas, a luta é sempre diária, e o projeto veio na hora certa.

O jogo da bola veio como aperitivo. Estamos no meio da tarde. É hora de afiar os dentes e correr para o almoço, renovar as energias. O acabamento, as bordas ficam pra depois. O estômago fala mais alto. Está na hora do PF, bem preparado na pensão da estrada de Madureira.

Novas cores se instalam em Nova Iguaçu através da arte popular da BXD CREW, o grupo do Dante. Novas palavras se acrescentam ao vocabulário iguaçuano: crew, tags, spot, 3D. O trabalho do grupo não é assinado, por ser um trabalho coletivo. Para Dante, “o grupo vale mais que o indivíduo”, frase que representa o espírito solidário, para substituir o espírito individualista do cada um por si. Novas cores, novos tempos vem chegando a Nova Iguaçu.

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